A DOR ADORA COMPANHIA


(NOTA: Aqui, os nosferatus são tratados como seres deformados. Seus cheiro e aparência são revoltantes - alguns diriam insuportável. Orelhas longas e bulbosas, crânios cobertos por uma pele áspera e ocasionais tufos de cabelos, rosto alongados marcados por verrugas e protuberâncias nojentas estão entre seus traços menos nauseantes.

No entanto, estes nosferatus tem poderes que lhe proporcionam transitar entre a sociedade mortal. Seja ofuscando seu corpo de forma que os humanos não possam vê-lo, seja fazendo com que todos o vejam com a aparência que desejar.)


Perfeito. Sorrio para o espelho. Dentes perfeitos, cabelos pretos, olhos castanhos, um sorriso que pode ser encantador e perverso. O cabelo meticulosamente penteado para parecer que não está. Casaco de couro, camisa preta, jeans pretos, prataria, botas pretas, maquiagem bem leve. Óculos espelhados para fazer tipo, embora já seja quase meia-noite. Um belo bárbaro à solta na cidade.

Ainda sorrindo, deixo cair a máscara, forçando-me a olhar enquanto o reflexo no espelho deforma. O sorriso escorre como água, dando mais curvas que um rio de montanha. A roupa bacana volta a ser o que estava na caixa do Exército da Salvação quando peguei há 18 anos. Ela cobre um emaranhado de membros contorcidos em várias direções, formando uma massa que faria Quasímodo escalar a torre do sino e rezar por mim. Um dia, aquela coisa ali - essa pilha de cascões gotejando pus por todas as fendas - foi meu rosto. Então sinto o cheiro - um perfume muito diferente do que eu usava quando era mortal. "Eau du Nosferatu" dá náuseas até em mim. Fico parado ali e conto até 10, lentamente, como faço todas as noites quando levanto. Para manter as coisas em perspectiva.

Basta. Já estou deprimido e irritado. Ponho a máscara novamente - o Amante Infernal reaparece no espelho. É hora de ir à cidade. Eu sei o que estou procurando, e onde encontrar.

Levanto a tampa do esgoto e escorrego para os túneis adjacentes ao meu refúgio. Os meus dedos cavam o limo, desenhando uma linha na parede. Rastejando na escuridão, ocasionalmente pisando em alguma coisa que esguicha entre meus dedos ou se esquiva. Não demora muito até que eu ouça o ritmo eletrônico do Clube Nocturne, pairando acima de mim como música celestial... ou alguma coisa do tipo. Eu sei que você está em lugar aí em cima, pulando na pista de dança como um peixe ferido. Posso sentir o seu cheiro.

Há um túnel de acesso para a sala de manutenção do Nocturne, uma que apenas eu e outros Ratos conhecemos - e os malditos Toreador pensam que dirigem o lugar. Escalo, como Satã arrastando-se para o inferno, e emerjo entre fios e detritos. O som me cerca - o ritmo martela a minha cabeça e me irrita ainda mais. Checo a minha máscara - quero aparecer bonito para você. Isso. Estou encantador, como fui um dia. Minhas botas inexistentes brilham sob a única lâmpada no teto, e meu também inexistente medalhão de prata contrasta com minha camisa preta com os dizeres "Dead Can Dance", que aliás também não existe. Minha expressão de asno certamente parece um biquinho pretensioso e sedutor.

Encoberto pelas sombras, saio do almoxarifado, passando direto pelos leões de chácara, que não me vêem por que não quero. Caminho - ou melhor, desfilo - pelo corredor adjacente, saindo na pista de dança, coberta por névoa artificial.

Procuro por você pelas manchas de cores, mudando um centena de vezes por minuto. Meus inexistentes óculos espelhados refletem púrpura, azul, verde e branco radiante, ao ritmo de Christian Zombei Vampira - essa porcaria, e os imbecis dançando ao som dela, me dão ânsia de vômito. Mas, para você, minha reação parece sexo.

Passo por um "mariquinha" miúdo, uma raspa de caixão pálida e envolta numa mortalha negra. Seus cabelos pretos, penteados para trás, estão endurecidos com gel fixador, e seu rosto espinhento está coberto por maquiagem branca. Não dá para saber se ele quer parecer com Robert Smith ou com o Coringa. Ele está com uma bebida em cada mão - quando passo por ele, deixo cair a máscara por menos de um décimo de segundo - tão rápido que a informação é passada quase subliminarmente. As bebidas voam pela pista de dança e o rosto do garoto contorce-se em choque. Tomara que tenha mijado nas calças. E aqui estamos nós, Amante Infernal de novo. Volto-me para o garoto e, com um sorriso encantador, confronto seu olhar bestificado. Ele nem reparou os olhares de desaprovação das pessoas ao redor.

Mas chega de diversão. Meu assunto hoje é você. Atravesso a multidão que se amontoa em torno do bar, sentindo olhos famintos deitarem-se sobre mim. Eu poderia ter quem quisesse esta noite. A sua casa ou a minha? Oh, não repare nas pilhas de excremento e nos ratos podres.

Mas eu não quero qualquer um. Quero você. Eu sei que está aqui em alguma parte. Rejeito silenciosamente três olhares sedutores enquanto passo a vista no bar. E aí está você, contorcendo-se sensualmente à luz estroboscópica.

Ah, você é perfeita. Deixe-me adivinhar. Você tem uns vinte e poucos anos, mas está cada vez mais perto dos trinta, embora finja que não. Durante o dia, trabalha no banco e finge que não, e é por isso, que se produz toda como uma estrela de Hollywood. Sim, você é esterotipadamente adorável, um sonho molhado de Neil Gaiman, uma linda bonequinha vodu banhando-se à luz estroboscópica do clube tentado esquecer o que lhe aguarda - marido, emprego estável, dois filhos e meio, caminhonete, reuniões de pais e mestres e uma casinha no subúrbio onde passará o resto da sua vida vegetando diante da tevê. Mas vamos deixar isso para semana que vem, tá? Hoje é dia de espetáculo.

Esta porcaria é uma forma de fuga para você, não é? Deixa para trás o mar de angústia, tentando ser encantadora, tentando esquecer a morte em vida que a espera daqui a seis, sete horas. À noite , sob as luzes estrobocóspicas, ninguém precisa saber do tédio e da insegurança embaixo de todo esses couro, seda e maquiagem.

Aposto que você também já leu muita coisa da Anne Rice. Isso, já leu todos os livros dela! De vez em quando tem fantasias com Lestat, querendo que ele apareça para carregá-la para a noite. Você adoraria ser uma Vampira, certo? Isso que seria vida, certo? Sem emprego ou responsabilidades, sem ter que lidar com pessoas inconvenientes, sem rugas ou cabelos grisalhos ou pés de galinha. Só uma maratona infindável de sexo em Nova Orleans, quando o sangue escorreria pelo seu corpo como comida em Kim Basinger em 9 ½ Semanas de Amor.

Bem, está é a sua noite de sorte meu bem. Você vai viver para sempre. Hoje descobrirá o que significa realmente ser um Vampiro.

Espero até os primeiros acordes melódicos de “Tim Omen” para me posicionar à sua frente. Como previ, você fita meus óculos espelhados com um sorriso suave que tenta evocar mistério e revela sua transparência. Converso com você e digo alguma coisa que não pode ouvir porque a música está alta demais, e você abre um sorriso e ri. Aproximo-me mais de você, e quando “This Mortal Coil” começa a tocar, já estamos de braços um com o outro.

Tiro-a da pista de dança, nossos rostos juntinhos. Você já está um pouco tonta, e mais umas bebidas a deixarão bêbada. Não sou de muito papo, e você não tem simplesmente nada de interessante para dizer, de modo que pulo as preliminares e a convido parar sair do clube e irmos para o meu Camato preto. Você dá uma risadinha e se apoia no meu braço, confiando em mim para guiá-la. Como você já está bem bêbada, e não é muito esperta, só bem depois de entrarmos num beco escuro se dá conta que o estacionamento do clube fica na outra direção. Quando o primeiro lampejo de alarme brilha nos seus olhos, decido que estou cansado do jogo. Não há ninguém por perto para nos ouvir, querida. Só os mendigos. É hora de tirar a máscara.. O Amante Infernal é substituído pelo Inferno Encarnado.

Qual é o problema querida? Não quer outro beijo? Um bem mais longo e lento? Ninguém vai atender aos seus gritos, mas eles são terrivelmente irritantes, o que me faz tapar-lhe a boca. Empurro-a contra a parede do beco e me inclino sobre você. Quero que você sinta. Quero que tenha medo. Não quero que desmaie, mas que esteja bem consciente.

Você chora e golpeia meu peito com os punhos. Bobagem, querida. É como socar cartilagem. Mas eu não a entendo. Você parece uma Vampira, veste-se como uma Vampira, age como uma Vampira, lê sobre Vampiros. E agora eu a apresentei a um Vampiro - um Vampiro de verdade, bem morto. Não quer ser mais Vampira? Igualzinha a mim?

Mas claro, existem Vampiros "de verdade", meu bem - ou, pelo menos, o tipo que você chamaria de verdadeiros, o tipo sobre o qual você fantasia. Os Toreador, cheios de si; os Ventrue, podres de rico; Os Garotos Perdidos Brujah - todas as pessoas bonitas. Não, a senhora acaba de ganhar uma passagem direta para o Inferno, cortesia do Clã Nosferatu.

Afundo meus dentes em seu pescoço - eu lhe concedo o luxo da mordida tradicional, porque sou romântico - e os gritos abafados decrescem para sussurros. Então não há mais nada além dos seus olhos, como os olhos de um veado iluminado por faróis, olhando para mim com horror e confusão, gritando silenciosamente: "Por quê?"

Por que? Eu não sei realmente porquê. Acho que é porque os babacas como você me deixam doente. E a dor adora companhia.


(Mark Hein Hagen - “Vampiro: A Máscara”)

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